Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 375/2015, de 25 de Novembro de 2015

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Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 375/2015, de 25 de Novembro de 2015   Tribunal Constitucional
N.º 375/2015    

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, interposto por FANNY CLÁUDIA DE MATOS ALMEIDA, do Acórdão do Tribunal Supremo.



REPÚBLICA DE ANGOLA
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

ACÓRDÃO N° 375/2015

PROCESSO N.°459-B/2015
Recurso extraordinário de inconstitucionalidade

Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I - RELATÓRIO
1 - Fanny Cláudia de Matos Almeida, residente no Lubango, solteira, maior, funcionária da Televisão Pública de Angola, inconformada com o acórdão da Câmara do Cível, administrativo, fiscal e aduaneiro do Tribunal Supremo que, como diz, confirma a sentença da sala de família do Tribunal Provincial da Huíla que lhe “retirou” a guarda do filho menor de 7 anos de idade, Cássio Alexandre Almeida Joaquim, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade por considerar que tal decisão não atendeu ao interesse superior do menor.
2. A Recorrente, em síntese e essencialmente, alegou o seguinte:

a) O menor Cássio nasceu no Lubango de uma relação extraconjugal do Recorrido, tendo hoje 7 anos de idade;
b) A Recorrente é repórter de televisão e por causa desse seu trabalho era obrigada a frequentes ausências de casa aproveitadas pelo pai, camionista de profissão, para ir buscar o menor para estar consigo de forma desregulada e abusiva no entendimento da mãe;
c) Foi por iniciativa da mãe que o Curador de Menores em representação do Cássio propôs a acção de regulação do poder paternal em separado, quando o menor já completara os 5 anos;
d) Na sua petição o Curador de Menores apresentou as testemunhas e os membros do conselho de família que lhe haviam sido indicados pela ora Recorrente;
e) Foi realizada a conferência de pais tendo a mãe, ora Recorrente, dado conhecimento ao Tribunal que o menor vivia desde o ano anterior com os avós maternos na província do Namibe;
f) Na conferência, o pai opôs-se à deslocação do menor para o Namibe porque o impediria de visitar e ter consigo o filho com a frequência desejável, acrescentando que, desde a ida do filho para o Namibe, sem o seu consentimento, só o tinha visto duas vezes;
g) O Conselho de Família pronunciou-se pela entrega do menor aos cuidados da mãe;
h) Não havendo acordo, o Tribunal manteve a guarda provisória do menor confiada aos avós matemos;
i) Ouvido o Conselho de Família o Tribunal veio a pronunciar-se pela entrega do menor aos cuidados do pai, decisão com a qual não se conformou, tendo apelado para o Tribunal Supremo onde o recurso veio a ser julgado deserto por não pagamento de custas;
j) Tendo reclamado para a conferência, veio a reclamação a ser indeferida por se considerar infundado o argumento segundo o qual a Recorrente não havia sido notificada para o pagamento das custas em dobro;
k) Não se resignando, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, tendo-o feito em representação de Cássio Alexandre Almeida Joaquim, dando conta da sua inconformidade “com a decisão de confirmação da sentença proferida pelo Tribunal da Huíla que ordena a guarda ao pai”;
l) Alega que o Tribunal Supremo tomou uma decisão de forma, de procedimento, alheando-se de uma decisão que terá influência na vida da criança, deixando de se pronunciar sobre a questão mais relevante que é o futuro do menor;
m) Alega ainda que o menor voltou para o Lubango, estando a viver consigo, o que em seu entender afasta toda e qualquer razão de facto para que se justifique a manutenção da decisão recorrida;
n) Termina pedindo que a decisão do tribunal “a quo” seja declarada inconstitucional por violar o princípio de protecção do interesse superior da criança consagrados no artigo 35.° n.° 6 da Constituição e nos artigos 3.°, 9.° e 27.° da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas de que Angola é parte.

3. Por sua vez o Recorrido apresentou comprovativos bancários da sua situação patrimonial desafogada e fotografias da sua nova casa demonstrativas das condições de habitabilidade e capacidade de acolhimento do menor, tendo igualmente alegado o seguinte:

a) Estar a decisão do tribunal “a quo” imbuída de humanismo sem ter sido descurada a sua legalidade;
b) Tanto assim que o Curador de Menores se conformou com ela não tendo recorrido da decisão, certamente por ter entendido que o Tribunal andou bem na sua decisão;
c) Não ser este recurso extraordinário de inconstitucionalidade mais do que um expediente dilatório da Recorrente que continua a recusar-se a cumprir o que foi decidido pelo Juiz da Huíla, baseando-se no facto de a decisão não ter ainda transitado em julgado;
d) A recorrente não pode, no entanto, iludir um outro facto que é o do mero efeito devolutivo com que foi admitido o seu recurso de apelação para o Tribunal Supremo pelo que continua em flagrante desobediência ao Tribunal;
e) Por outro lado a recorrente tomou a iniciativa de trazer o menor para o Lubango, tendo-o à sua guarda e mantendo a sua maliciosa intransigência quanto a qualquer contacto do filho com a família paterna que integra outros irmãos do menor, reiterando o comportamento que foi censurado pelo Tribunal Provincial da Huíla;
f) De resto, o presente recurso para o Tribunal Constitucional foi a forma encontrada para obviar à negligência e falha relativamente ao pagamento de custas devidas e não liquidadas apesar de ter sido a Recorrente em vão notificada para o seu pagamento em dobro.


II - COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE
O Tribunal é competente para conhecer o recurso, oportunamente interposto e admitido no Tribunal Supremo (alínea m) do artigo 16.° e números 4 e 5 do artigo 21.° da LOTC e artigo 49.° da LPC).
A Recorrente é parte legítima nos termos da alínea a) do artigo 50.° da Lei n.° 3/08, de 17 de Junho, que estipula que “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o ministério público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
É de observar que neste recurso para o Tribunal Constitucional a Recorrente alterou a sua qualificação como parte, na medida em que interveio sempre em seu nome pessoal e passa a agir em representação do seu filho menor Cássio Alexandre Almeida Joaquim. O recurso extraordinário foi admitido no Tribunal Supremo sem qualquer observação. O facto é que numa ou noutra qualidade não pode deixar de se lhe reconhecer interesse em recorrer. Na realidade, quem representa o menor é o Digno representante do Ministério Público que não interpôs recurso da decisão regulatória. Já o pai do menor, pelo seu manifesto interesse em contradizer, é igualmente parte legítima neste recurso extraordinário de inconstitucionalidade (n.° 1 do artigo 26.° do CPC e artigos 2.° e 39.° da LPC).


III - OBJECTO DO RECURSO
Constitui objecto do presente recurso o acórdão de fls. 137 e seguintes proferido pela Câmara do Cível, administrativo, fiscal e aduaneiro do Tribunal Supremo e, nesse âmbito, verificar se o jurisdicionalmente decidido está sintonizado com o ideal constitucional de garantia e protecção dos direitos e interesses do menor.


IV. APRECIANDO
Fixado o objecto do recurso cabe agora ao Tribunal Constitucional, no exercício da sua jurisdição, apreciar se o acórdão reclamado está em conformidade com a Constituição.
O acórdão em apreciação confirma o despacho de deserção da apelação proferido pelo Juiz Relator com fundamento na falta de pagamento do preparo inicial, não se tendo assim, em instância de recurso, conhecido o recurso de apelação e apreciado o mérito da sentença que decidiu sobre a guarda do menor Cássio Alexandre Almeida Joaquim.
Compulsados os autos verifica-se que a Recorrente ficou inconformada com a sentença que lhe retirou a guarda do filho menor, em favor do pai e que dela apelou esperando a sua reapreciação em 2a instância, o que fez no exercício legítimo de um direito fundamental, o direito ao recurso.
Verifica-se também que, efectivamente, não foi feito o pagamento do preparo inicial devido pela interposição do recurso apesar de, a notificação para o efeito (fls. 123) não ter sido feita na pessoa do mandatário judicial da recorrente, como estabelece o artigo 253.° n.° 1 do CPC.
Numa apreciação de estrita legalidade é objectivamente inatacável a decisão recorrida porquanto a falta do pagamento do preparo determina a deserção do recurso e a consequente extinção da instância.
É o que estabelecem os artigos 292.° n.° 1 e alínea c) do 287.°, ambos do CPC.
Porém, a conformidade de um acto à lei, isto é, o facto de uma decisão ter sido tomada com base numa disposição legal, não é sinónimo automático da sua conformidade à Constituição.
Por assim ser e no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade dos actos e decisões judiciais, o Tribunal Constitucional, além de ajuizar da sua legalidade tem ainda uma missão acrescida e qualificada: sindicar a sua constitucionalidade, confrontando os seus fundamentos e conteúdo com os princípios, os valores e as normas da Constituição.
Por isso, no caso em apreciação impõe-se verificar se a decisão reclamada (deserção de recurso) com o fundamento invocado (falta de preparo), com os efeitos que acarreta (preterição de recurso para ajuizar em 2a instância da “bondade” de decisão sobre a guarda de um menor) e nas circunstâncias do caso concreto (retirada do menor da guarda da mãe - requerente da tutela, em favor do pai, deslocando-a para outro ambiente familiar e contra a opinião manifestada pelo Conselho da família) dizia-se, importa verificar se tal decisão respeita os comandos constitucionais.
O n.° 1 do artigo 3º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança dispõe que “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições... por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
A República de Angola é parte dessa Convenção sendo por isso a mesma aplicável pelos Tribunais Angolanos na apreciação de litígios, incluindo o Tribunal Constitucional, como decorre dos números 1, 2 e 3 do artigo 26° da CRA.
Pergunta-se: a decisão reclamada atendeu ao disposto na supracitada norma da constituição? Essa decisão considerou como prioridade, como manda a Constituição, o interesse superior da criança?
É nosso entendimento que não. O que ali se priorizou foi o cumprimento de uma norma de natureza adjectiva e de conteúdo processual - fiscal. Não se priorizou, como devia, o interesse superior da criança que, no caso concreto seria o conhecimento do recurso para, aí sim, verificar se a decisão recorrida teve ou não em conta o interesse superior da criança.
Também o artigo 35° n.° 6 da CRA, norma inserida no Capitulo dos “Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais” estabelece que “a protecção dos direitos da criança, nomeadamente a sua educação integral e harmoniosa, a protecção da sua saúde, condições de vida e ensino constituem absoluta prioridade da família, do Estado e da Sociedade (sublinhado nosso).
Daqui decorre que, um Estado como o estado angolano, cuja Constituição o obriga a dar absoluta prioridade à protecção dos direitos da criança, não pode escusar-se de o fazer por priorizar o atendimento de uma norma “processual - fiscal”.
A própria cominação prevista para o incumprimento de tal dever processual -fiscal, em caso de mora ou inacção negligente de mandatário judicial ou seus colaboradores (deserção), afigura-se constitucionalmente excessiva e desproporcional, tendo em conta os princípios constitucionais que tutelam o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, o direito ao recurso enquanto direito fundamental dos cidadãos, à dupla jurisdição, bem como ao “dueprocess” (artigo 29.°da CRA).
Pelo até aqui considerado é entendimento do Tribunal Constitucional que o acórdão reclamado não está conforme aos imperativos da Constituição.
O Tribunal Constitucional fazendo uso do seu dever de aplicação directa da Constituição constante do artigo 28.° n.° 1 da CRA, considerando a prioridade constitucionalmente estabelecida para a protecção da criança, anteriormente referida, tendo em consideração que com a prolação do acórdão recorrido se esgotou a cadeia recursória ordinária da jurisdição comum (artigo 49.° § da Lei n.° 3/08 de 17 de Junho) e, finalmente, vista a relevância constitucional de atendimento do interesse da celeridade e economia processual, deve agora verificar se a sentença recorrida se compagina com a CRA, mormente, se acautela o interesse superior do menor à mais adequada protecção dos seus direitos e interesses.
Em tese e em abstracto, atribuir a guarda a um menor ao pai, em desfavor da mãe, não é inconstitucional e adequa-se ao princípio constitucional da igualdade dos progenitores relativamente as obrigações e responsabilidades para com os seus filhos.
Questão diferente, mas constitucionalmente relevante, é saber se no caso concreto a decisão tomada foi a que mais e melhor salvaguarda o sempre referido “interesse superior do menor”.
Dizem os autos que o menor Cássio, hoje com 7 anos de idade está de facto sob a guarda e cuidados da mãe, a Recorrente, desde a data do seu nascimento. Os autos não apontam nenhum facto, queixa ou indício de que a mãe tenha falhado no cumprimento dos seus deveres para com o filho ou que este não tenha condições apropriadas de vida na companhia da mãe.
Com este quadro não se considera que retirar o menor do meio familiar em que vive desde o nascimento e em que é bem tratado, deslocando-o para outro meio, ainda que seja a família do seu pai (madrasta e irmãos paternos), seja a melhor salvaguarda do seu interesse superior. Ademais, tal decisão foi tomada contrariando o pronunciamento do Conselho de Família, num processo em que o pai não pediu a guarda do menor, mas apenas o seu legitimo direito a conviver regularmente com o filho e contribuir para o seu sustento, como tem feito.
Há entretanto nos autos, elementos que indicam que a Recorrente não vem facilitando o contacto regular do pai com o menor, tendo inclusive decidido unilateralmente enviar o menor para a cidade do Namibe, onde passou a residir com os avós matemos sem o consentimento do pai.
Porém, tal não é o bastante para retirar-lhe a guarda na medida em que o regime de visitas e de residência do menor é estabelecido por sentença e é de acatamento obrigatório.
Actualmente o menor encontra-se já, novamente, a residir na cidade do Lubango, por decisão da mãe, local de residência dos progenitores, o que vem facilitar o atendimento da reclamação paterna e assim, com isso, também o interesse do menor de convívio normal e regular com o seu pai e irmãos.
Desta forma, é também entendimento deste Tribunal que a sentença de fls. 76 a 85 dos autos, por retirar o menor do meio familiar em que vive com a mãe, sem razão bastante, não se conforma ao princípio constitucional de salvaguarda do interesse superior da criança.
Consequentemente, deve a sentença ser reformada, atribuindo-se a guarda do menor Cássio Alexandre Almeida Joaquim à mãe, sem prejuízo do direito do pai ao convívio normal com o filho, nos termos habitualmente regulados, o que pressupõe que o menor passe a residir efectivamente na cidade do Lubango, onde pai e mãe igualmente residem.

Nestes termos

Tudo visto e ponderado

Acordam em Plenário os Juizes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: dar provimento ao recurso considerando inconstitucional o acórdão recorrido devendo, em consequência, a sentença de fls 76 a 85 ser reformada para atender ao princípio constitucional de salvaguarda do interesse superior do menor, como se estabelece nas disposições conjugadas do n.º 6 do artigo 35.º da CRA e n.º 1 do artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança, aplicável à luz do estabelecido no artigo 26.º da CRA, sem prejuízo do pagamento em dobro das custas ainda devidas pela interposição da apelação.

Custas pela Recorrente nos termos do artigo 15.° da Lei n.° 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 25 de Novembro de 2015.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr.a Efigénia M. Lima Clemente
Dr.a Luzia Bebiana de Almeida Sebastião
Dr.a Maria da Imaculada L. da C. Melo.
Dr. Miguel Correia
Dr. Onofre Martins dos Santos
Dr. Raul Carlos Yasques Araújo


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